16 de fevereiro de 2016

Odarinha

16.02.2016

Tirando a repetição da dezena, que não vou nem me abalar para descobrir o que pode significar, a data está gravada em mim. Faz parte de minha vida, na verdade. Hoje, exatamente hoje, faz um ano que tivemos a difícil missão de deixar Odara ir. A decisão doeu como um golpe. Especialmente porque quando decido por mim e para mim, eu mesma assumo as consequências. Mas definir o rumo que ela teria era torturante e angustiante.

Não foi uma decisão apenas minha. Todos nós, que estivemos com ela durante os quase dois anos, decidimos juntos e, como não poderia deixar de ser, sofremos. Juntos e separados. Foram meses de total convívio com os cânceres. Pele, mama e pulmão. Lá estava a doença. Doía muito nela, mas não menos em nós. Criamos bazar, vendemos livros colecionados por anos e lixeiras de carro confeccionadas por uma amiga, comercializamos bebida no galo da Madrugada, criamos Vakinha, doamos parte de nosso salário e o possível e impossível de nosso tempo também. Doamos a ela, mas doamos a nós.

Cada etapa da químio, exame pré e pós, vacinas, táxis, caronas, banhos, entre outras atividades, era um aprendizado. De como união é a chave da vida, da importância do dinheiro para a saúde (e do quanto ele não vale nada diante da cura), do poder da rede social e dos amigos. Do acordar cedo para ministrar os medicamentos, preparar a vitamina, escovar os pelos que caiam com o tratamento, dos curativos, do afago para acalmar a respiração agitada. Dor, impaciência e alegria resultavam em aumento na tosse. Então, só carinho, calma, compaixão e companheirismo diminuíam a falta de ar dela.

Ela tinha um gênio que nenhum outro cachorro meu teve/tem. E olha que foram, pelo menos, sete bichos aqui em casa ao longo da minha vida. Quando Odara queria muito alguma coisa, não dava outra. Ela pegava, nem que fosse dentro da panela, no fogão, em cima da pia, do armário. Foram potes de manteiga, bandejas de carne, patês, salgadinhos, galinha, cuscuz, colher de pau..a lista é longa. Se ameaçasse tirar a fatia de presunto, por exemplo, não havia cristão que a fizesse comer. Orgulho puro. Nesse mesmo nível era a chantagem. Quando ficamos sem elevador, ela estava em tratamento. Ou eu a trazia no colo ou ela subia. Mas só quando era motivada por comida.

Com ela, pudemos vivenciar um pouco do efeito de um câncer. Não estou comparando humano x cachorros. É apenas nossa experiência. Entre soros, injeções, biópsias e coletas, muito amor nos olhos dela. E respeito. Pela sua dor, pelo momento que queria apenas ficar deitada na cama dela. Em muitas noites fui dormir me despedindo dela. E na manhã seguinte, aquela tosse denunciava que ela estava viva e animada.

Ironicamente, no último final de semana dela conosco, havia muita festa. Era Carnaval. E isso foi bom porque pudemos descer e comprar muitos espetinhos só para ela. Era uma despedida do jeito que ela gostava. Era uma lição de apego, orgulho, vaidade, amor e saudade. Era entender que não havia ânimo mais algum nela. Só dor e inquietação. O câncer estava sendo maior que ela.

Tentamos, avaliamos todas as possibilidades, rezamos, quisemos um milagre. Não veio. Os médicos olharam novamente os exames e as imagens eram as piores possíveis. Não tinha acordo, remédio fazendo efeito, tranquilidade, nada. Absolutamente nada. E a única alternativa foi te deixar ir. Segurei e me abracei a você durante todo o procedimento e cada vez que o tempo passava, eu queria mais. Reviver as brincadeiras, te causar ciúme, 'correr' com você, reclamar de seu catarro na minha perna e por me envergonhar com seus puns na frente dos médicos ou no elevador. Qualquer momento a mais.

Que dois anos, Odara. Tivemos amigos do início ao final dessa nossa convivência. Pessoas inimagináveis até, como médicos que barateavam ou não cobraram pelo serviço. A moça da barraca que topou vender as lixeiras, os vizinhos que perguntavam todo dia por você, colegas de profissão, parentes, amigos, pessoas de outros estados. Como sempre, gente! 

E conseguimos te oferecer o melhor que podíamos. E faríamos tudo novamente se voltássemos ao tempo. Iríamos na Avenida Cruz Cabugá apenas alimentar um animal que estava deitado na chuva. Depois era só até a chuva passar. E depois só até você estar apta para adoção. E nunca houve esse depois de nossa parte. Foi naquela noite. Era você. Era eu.


Minha torrinha:



















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