Nunca entrei em
uma máquina do tempo. Não faço ideia da sensação que deve ser avançar ou
retroceder no tempo e nem os efeitos que a projeção ou nostalgia causa na
pessoa. Não sei se é similar ao que vivi ontem ao visitar a minha avó. Todas as
vezes que percorro o caminho, diretamente ao passado, abre um buraco de
sentimentos confusos e, por vezes, sem que uma racionalidade explique.
Lá é uma terra
sem wifi, televisão por assinatura, coloridos de casa moderna. A televisão
exibiu uma tarja ontem lembrando que está chegando ao fim a transmissão
analógica e que aquele aparelho não comporta a tecnologia digital. A tv que
assistia no quintal não existe mais. Ali, apenas o suporte dela.
Pouca coisa
mudou. Na verdade, pouco ganhou evolução. A casa abriu espaço para reformas de
adaptação. De banheiro, de piso, de apoio, de cama, de iluminação. A
acessibilidade ganhou espaço para vovó. Com 97 anos, Alzheimer e Parkinson, ela
sobrevive a uma memória minha, que dói cada vez que a encontro.
Ali está uma
estrutura física do meu passado. Voltar ali é rever minha infância, com casa
cheia de primos e tios, um cachorro (que morreu quando eu ainda era criança),
Domingo Legal e muito caranguejo que vovó fazia. Sempre gostou de cozinhar. E a
gente sempre gostou de ir lá entrar na área da bomboniere.
Aliás, como tudo
ficou pequeno, menos o aperto no peito. Os quartos pareciam maiores, assim como
a parede que ostenta quadro dos netos – nunca estivemos lá. O muro que
fingíamos ser cavalo parece mais um batente do que uma sela. As plantas, uma
das paixões de vovó, foram morrendo pouco a pouco; as panelas, sempre
brilhantes de tanto cuidado, estão encostadas e não são dignas de serem
utilizadas para o cozimento de um alimento com restrições.
A barsa, essa
sim, continua lá. A enciclopédia está, desde que me entendo por gente, no
quartinho perto da copa. Ali é um amontoado de sobras, arquivos e mais um monte
de coisa que passa batido no dia a dia. Apesar de conhecê-lo, nunca foi meu
canto preferido. Era escuro demais e eu tinha medo.
Minhas
referências estão naquela casa branca, com um arco na entrada. O aquário com
iluminação rosa, o quadro que retrata a luz da lua no mar, os mesmos
equipamentos eletrônicos, uma agenda telefônica azul e jogos de louça que orgulhava vovó. Poucas coisas permanecem lá. Minha infância,
meu pai, vovó, as brincadeiras com os primos, os vizinhos das brincadeiras de
rua, as festas juninas e natalinas, os senhores que moravam ali. Um deles,
soube ontem, faleceu e fiquei em choque. Mesmo sabendo que já era um senhor, foi
mais uma perda de ligação.
Pouco que está
ali continua na minha rotina. Exceto o contato com minhas tias, parece que
houve uma quebra entre passado e futuro. Fui ali rever vovó. Ela não me viu
porque dormia e assim continuou enquanto conversava com tia e jantávamos. Soube
de todas as novidades, acompanhei o estado de saúde de vovó, olhei para ela. Vi
uma pessoa que sempre foi durona com criança, acordava de madrugada e tomava
chá no pires, fazia bolinho de feijão com arroz e o pirão. Quando adolescente,
eu ia lá uma vez por semana e comia o tradicional macarrão parafuso.
Vi o quanto a
vida é curta, apesar do quase um século dela, nosso corpo, frágil. As pessoas
ao nosso lado têm muito mais do que demonstram. Os relacionamentos são cíclicos
e temos muito a receber e dar pelo próximo. Vi que a vida, nesses meus 29 anos,
tem me mostrado o quanto sou bem pequena diante de tanta coisa que acontece e,
prepotente, acho que a entendo.
Foram minutos
fitando aquela senhora na camisola bem simples, ventilador, medidas reduzidas e
um coçar de pernas que mais parecia um afago nela mesma do que uma agonia. Dei
um beijo na cabeça dela, como sempre fiz depois que passei sua altura, disse
que a amava e esperei virar a rua para chorar.