23 de novembro de 2016

Em algum lugar do tempo





Nunca entrei em uma máquina do tempo. Não faço ideia da sensação que deve ser avançar ou retroceder no tempo e nem os efeitos que a projeção ou nostalgia causa na pessoa. Não sei se é similar ao que vivi ontem ao visitar a minha avó. Todas as vezes que percorro o caminho, diretamente ao passado, abre um buraco de sentimentos confusos e, por vezes, sem que uma racionalidade explique.

Lá é uma terra sem wifi, televisão por assinatura, coloridos de casa moderna. A televisão exibiu uma tarja ontem lembrando que está chegando ao fim a transmissão analógica e que aquele aparelho não comporta a tecnologia digital. A tv que assistia no quintal não existe mais. Ali, apenas o suporte dela.
Pouca coisa mudou. Na verdade, pouco ganhou evolução. A casa abriu espaço para reformas de adaptação. De banheiro, de piso, de apoio, de cama, de iluminação. A acessibilidade ganhou espaço para vovó. Com 97 anos, Alzheimer e Parkinson, ela sobrevive a uma memória minha, que dói cada vez que a encontro.

Ali está uma estrutura física do meu passado. Voltar ali é rever minha infância, com casa cheia de primos e tios, um cachorro (que morreu quando eu ainda era criança), Domingo Legal e muito caranguejo que vovó fazia. Sempre gostou de cozinhar. E a gente sempre gostou de ir lá entrar na área da bomboniere.

Aliás, como tudo ficou pequeno, menos o aperto no peito. Os quartos pareciam maiores, assim como a parede que ostenta quadro dos netos – nunca estivemos lá. O muro que fingíamos ser cavalo parece mais um batente do que uma sela. As plantas, uma das paixões de vovó, foram morrendo pouco a pouco; as panelas, sempre brilhantes de tanto cuidado, estão encostadas e não são dignas de serem utilizadas para o cozimento de um alimento com restrições.

A barsa, essa sim, continua lá. A enciclopédia está, desde que me entendo por gente, no quartinho perto da copa. Ali é um amontoado de sobras, arquivos e mais um monte de coisa que passa batido no dia a dia. Apesar de conhecê-lo, nunca foi meu canto preferido. Era escuro demais e eu tinha medo.

Minhas referências estão naquela casa branca, com um arco na entrada. O aquário com iluminação rosa, o quadro que retrata a luz da lua no mar, os mesmos equipamentos eletrônicos, uma agenda telefônica azul e jogos de louça que orgulhava vovó. Poucas coisas permanecem lá. Minha infância, meu pai, vovó, as brincadeiras com os primos, os vizinhos das brincadeiras de rua, as festas juninas e natalinas, os senhores que moravam ali. Um deles, soube ontem, faleceu e fiquei em choque. Mesmo sabendo que já era um senhor, foi mais uma perda de ligação.

Pouco que está ali continua na minha rotina. Exceto o contato com minhas tias, parece que houve uma quebra entre passado e futuro. Fui ali rever vovó. Ela não me viu porque dormia e assim continuou enquanto conversava com tia e jantávamos. Soube de todas as novidades, acompanhei o estado de saúde de vovó, olhei para ela. Vi uma pessoa que sempre foi durona com criança, acordava de madrugada e tomava chá no pires, fazia bolinho de feijão com arroz e o pirão. Quando adolescente, eu ia lá uma vez por semana e comia o tradicional macarrão parafuso.

Vi o quanto a vida é curta, apesar do quase um século dela, nosso corpo, frágil. As pessoas ao nosso lado têm muito mais do que demonstram. Os relacionamentos são cíclicos e temos muito a receber e dar pelo próximo. Vi que a vida, nesses meus 29 anos, tem me mostrado o quanto sou bem pequena diante de tanta coisa que acontece e, prepotente, acho que a entendo.

Foram minutos fitando aquela senhora na camisola bem simples, ventilador, medidas reduzidas e um coçar de pernas que mais parecia um afago nela mesma do que uma agonia. Dei um beijo na cabeça dela, como sempre fiz depois que passei sua altura, disse que a amava e esperei virar a rua para chorar.


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