Reproduzo abaixo matéria publicada no JC de hoje:
» OS NOSSOS HAITIS
Indigente até na hora de morrer
Publicado em 20.02.2010
Eleni Costa, mulher que morava na areia da Praia de Boa Viagem, morreu no último dia 4. Cadáver foi oferecido para estudos a acadêmicos do curso de medicina da UFPE
João Valadares
jotavaladares@gmail.com
E a morte mais previsível chegou. Eleni Costa Souza, 40 anos, aquela mulher de vida descascada que morava na areia da Praia de Boa Viagem, Zona Sul do Recife, e teve a sua história contada na matéria Nossos Haitis, na edição do JC do dia 31 de janeiro, morreu sem ninguém saber. Ficou por lá, apodrecida, numa gaveta da geladeira do Hospital Agamenon Magalhães (HAM). Foram 12 dias sem aparecer ninguém para reclamar, para dizer “ela é meu parente”, para vesti-la. O marido Erivaldo Braz dos Santos, 27, tentou.
No dia 4 de fevereiro, quando ela morreu, saiu para buscar o mínimo pedaço de papel com o nome Eleni. Precisava provar que ela existia mesmo. Queria, ao menos, enterrá-la como gente. Não deu. A vida, justamente ela, trombou com Erivaldo no calçadão de Boa Viagem e encarregou-se do contrário. No mesmo dia, ele assaltou uma turista que fazia cooper por lá e acabou preso. Bem perto de onde, há três semanas, negaram-lhe um pouco de comida que iria alimentar o Haiti. “Vergonha é roubar” foi a frase dita a uma senhora loura que lhe explicava o motivo de não poder repassar as doações. Erivaldo foi direto para a prisão. Eleni, que nem sequer existiu, não poderia morrer de outra maneira. Como não havia nome nem nada, o cadáver não seguiu para o Serviço de Verificação de Óbito (SVO). Morta, foi oferecida aos acadêmicos do curso de medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mas, no momento, não estavam precisando de corpos para estudo. Então, finalmente, recebeu o carimbo oficial de descartável. Ganhou um atestado de óbito com causa da morte ignorada e foi enterrada como indigente, como sempre viveu.
O cadáver recebeu um caixão da Empresa de Manutenção e Limpeza Urbana do Recife (Emlurb), aquela que cuida dos entulhos. Foi coberto com pouca terra e mato na vala comum dos que nunca são percebidos. Uma cova bem rasa no fundo do Cemitério do Parque das Flores, no Sancho, Zona Oeste do Recife. Por ano, cerca de 900 pessoas são enterradas desta maneira. Sem cortejo e sem choro. Só quatro coveiros apressados para finalizar o serviço.
O JC conheceu Eleni no dia 27 de janeiro. Ela não levantava porque a força havia sumido. Difícil perceber sua existência. A mulher achava que estava grávida e há oito dias não conseguia comer. Faltava energia para mastigar o que nem existia. Sobrevivia com água ou caldo de osso. A matéria Nossos Haitis mostrou um desespero que não fazia barulho, bem embaixo do nosso nariz, ao lado das quadras de tênis de Boa Viagem. Eleni era o nosso terremoto, daqueles que matava aos poucos, no mais constrangedor silêncio.
Além do casal, moravam no nada, na mesma areia, em frente ao Hotel Marante, Pedro Pereira da Silva, 62, Cláudio José de Santana, 29, e Edvaldo Oliveira. Na manhã de ontem, Pedro estava lá no mesmo local. “Olá, estou lembrando de você. Você sabe que Eleni não resistiu? A ajuda chegou tarde. Até onde sei, ela está guardada na gaveta do hospital. Não pode sair de lá porque não tem documento.” Ninguém sabia que doença Eleni tinha. Parecia queimadura, mas era miséria mesmo. Em carne viva. “Foi o álcool que fez isso com minha pele. Não consigo fazer nada. Tenho família, mas não tenho como nem me levantar e procurar nada”, disse três dias antes de ser levada para o hospital pelo Serviço de Atendimento Médico de Urgência (Samu), no dia 29 de janeiro. Uma semana antes, o apelo de Erivaldo não foi ouvido. “Expliquei o caso. Liguei do orelhão a cobrar para o 192. Pediram o endereço, disse que morava aqui na areia, mas ninguém apareceu.”
A Secretaria Estadual de Saúde confirmou que Eleni deu entrada no Hospital Agamenon Magalhães às 17h55 do dia 29 de janeiro. Segundo a SES, havia várias feridas pelo corpo. Ela sofreu três paradas cardíacas e morreu às 14h10 do dia 4 de fevereiro. É o velho ciclo invisível de vida e morte. Mais previsível, impossível.