5 de março de 2010

Texto longo sobre amor

O melhor presente que meu pai me deu até hoje, tirando a minha concepção, foi Negrita. Ela é uma poodle, de cor preta e prestes a completar 18 anos na contagem de nós, humanos. Este ser quadrúpede é o registro de toda a nossa vida – a minha, da minha irmã e minha mãe. Meu pai não conta tanto porque não convive mais com ela há uns 11 anos, quando se mudou para o Pará (Nossa! Meu dei conta agora desse tempo).

Ainda lembramos do momento em que acordamos aos gritos numa determinada madrugada, ainda num velho e saudoso apartamento onde morávamos. O medo e espanto tomaram conta de mim, da minha irmã e de Negrita. Foi nosso primeiro encontro. Nós, em cima da cama; ela, embaixo, também assustada. Com o escândalo, meus pais acordaram e fizeram a apresentação formal, quando ela ainda não tinha nome. Claro que ninguém quis mais dormir, mesmo sabendo que às 6h todas estariam acordadas para ir à escola – menos Negrita.

Com a convivência, fomos ganhando afinidade. Nos tornamos amigas mesmo. Aos sábados, quando eu podia acordar mais tarde, Negrita entrava no quarto e me lambia até me acordar. O passo seguinte era me acompanhar até a cozinha, esperar eu pegar um pacote de Passatempo sem recheio e dois chambinhos. Íamos até a sala, ligávamos a TV e comíamos. Um iogurte para cada e também dividíamos o pacote de biscoito. Isso aconteceu até mainha descobrir nosso segredo e fechar a porta do quarto.

Acompanhamos todo seu processo de educação. Ficávamos trancadas no quarto para não ouvir o choro dela cada vez que painho a batia para recriminar as necessidades feitas em locais impróprios e também a destruição de estofados, sapatos e bonecas. Santa educação! Depois de muito errar, Negrita sabia os horários que ela desceria do terceiro andar para fazer suas necessidades, aprendeu a não ‘brincar’ com nossas bonecas e a obedecer nossas ordens. Claro que abusávamos de nossa autoridade para mostrar aos amigos o quão educada ela era.

Durante nossa convivência, tivemos problemas. Muitos. Lembro que uma vez, logo quando aprendeu a descer escadas, ela fugiu e painho nos impediu de ir atrás dela. “Ela vai aprender a voltar”, dizia. Nunca fomos de roer unhas, mas se tivéssemos o hábito, não teríamos mais o que destruir. E ela voltou. Nossos olhos, claro, brilharam. Em uma época, também, painho resolveu dar Negrita. Pronto! Nosso mundo caiu. Chorávamos as 24h do dia. Até que ele a trouxe de volta e de uma forma mais educada ainda – até hoje não sei se ele a deu ou a levou para um adestramento.

Apesar dessas divergências, brincamos muito. Descíamos para correr e cair. Sim, ela vinha e me derrubava no meio da rua. Morria de vergonha, mas passava rapidinho. Quinzenalmente, ela ia ao pet. Lá, escolhíamos o tipo de tosa. Voltava uma princesa. Uma bola negra com laços laranja, rosa ou, quiçá, verde. E ela voltava tímida, envergonhada. Ficava encolhida para ninguém vê-la ‘nua’.

Várias vezes disputamos o mesmo espaço no sofá. Na verdade, não havia disputa. O sofá era, indiscutivelmente, dela. Subia e encontrava um espaço. Não demorava muito e nós tínhamos que sair para que ela continuasse seu sono tranqüilo. O luxo se estendia também na alimentação. Ela cuspia o pão se ele viesse sem manteiga ou requeijão. A pior parte é que a obedecíamos.

Fomos ficando grandes e tivemos vários contratempos. Mudamos de casa muitas vezes e ela nos acompanhou em todas. Estranhava, se perdia e logo se acostumava e achava seu cantinho preferido. Nessas idas e vindas, ela também conheceu vários companheiros. Teve de tudo: outro poodle, rottweiler e cocker spaniel. A amizade sempre funcionou. Todos foram embora por diversos motivos, mas ela continuou. Conhece até a nova integrante da casa. É uma vira-lata espetacular, mas que veio com um grave defeito da rua: agride Negrita. Tivemos vários conflitos até separá-las completamente. Hoje, nada de brigas. Nada também de amizade.

A cada aniversário, uma comemoração. Uma vez, esquecemos a data e fomos rapidamente nos desculpar. Ela, com seu amor incondicional, pareceu nos perdoar. A cada ano, os sinais da idade começaram a aparecer. Também apareceram algumas doenças. E aí que ela é o nosso bem mais valioso. Isso, financeiramente falando mesmo. Foram cirurgias, tratamentos, vacinas, injeções, exames...tanta da coisa. Lembro que logo quando comecei a trabalhar, toda o dinheiro da minha hora extra foi destinado à cura dela. Brinco com esse fato, mas farei isso sempre que for necessário. Aliás, não só eu. Taty e mainha não economizam disposição, dinheiro e nem amor para ela.

Com as doenças e a idade avançando, fomos conhecendo e aprendendo a conviver com outra Negrita. Uma que já não possui mais seus lindos olhos castanhos - uma névoa da catarata ocupa o lugar. Uma que não corre mais quando chegamos em casa - as patas, trêmulas, não agüentam mais brincar. Quando tentou da última vez, ficou sentada no chão até eu pegá-la no colo.

Agora, os hábitos são outros. Se antes viajávamos, há uns longos anos não fazíamos isso. Até arriscamos fazer no último feriado de final de ano, quando fomos ao Rio e deixamos as duas em um hotelzinho. Agora, preferimos não deixá-la aos cuidados de outras pessoas. Nós conhecemos todo seu jeitinho e seu gosto, então, sabemos como deixá-la confortável.

É a única da casa que possui duas camas: uma em nosso quatro e outro, no de mainha. Ela escolhe onde quer dormir. Se mainha estiver em casa, ela dorme lá. Quando não, dorme com a gente e, facilmente, é a última acordar. Muitas vezes, levantamos para ver se ela estava respirando. Coitada! Saía de um sono profundo para nos tranqüilizar. Quando estamos na sala, a última a ir dormir a carrega no colo e a leva para a cama. Faz carinho, liga o ventilador até ela continuar dormindo. Ou não. Várias vezes a levamos e, antes de chegarmos na porta do quarto, lá estava ela.

Os sentidos dela já não funcionam muito bem. Acho que já esqueceu o próprio nome. Não adiantar chamar. O nome deu lugar ao estalar de dedos ou qualquer tipo de som para que ela saiba onde estamos e nos acompanhe. Caso contrário, temos que esperar ela chegar através de seu faro. É bem verdade que ouvimos estrondos durante o percurso dela. E aí levantamos para saber onde ela bateu e vamos socorrê-la.

Mesmo debilitada e sem a energia que dispunha antes, Negrita ainda é forte. Late alto e acorda para acompanhar nossa refeição. Não enxerga, mas arrisca comer o que ela acha que é pão ou qualquer coisa. Já deu a sorte de comer um sanduba que mainha deixou no banco. A embalagem de iogurte fica limpíssima. Ela tem uma arte de não deixar nenhum resquício do produto. O lixo? Continua vulnerável a seus ataques. Consegue levantar qualquer tampa para enfiar o focinho e comer qualquer coisa. Aliás, não sei se é devido à idade, mas ela tem um tremendo apetite. Mocinha, a vira-lata, assiste de longe Negrita comer a ração alheia. Claro que já estamos impedindo isso.

Atualmente, ela passa o dia na área de serviço – lugar que ela nunca conheceu muito bem. Cortou nosso coração tomar essa decisão, mas foi preciso. Ela já não tem mais pontos  definidos para liberar seus dejetos. Para ela, qualquer lugar é banheiro. E aí lá vamos nós pro serviço de limpeza. Até aí não tem problema. Só que é extremamente exaustivo chegar em casa e encontrá-la suja. Não tinha humor que resistisse. Então, ela ganhou mais um colchão. Antes de sair de casa, colocamos seu potinho com água e deixamos tudo limpo na área. À noite, ela nos espera para brincar um pouco. Pouquíssimo.

Brincamos que ela é ‘totalmente independente e descolada’ porque faz o que quer. Ô teimosia. Se vamos ajudá-la, ela rosna e arrisca mostrar os poucos dentes que têm. Dia desses, fui colocá-la na cama e meu polegar foi alvo de sua rebeldia. Doeu demais. Mas fiquei feliz por saber que ela ainda tem força. Compensou a dor. Mas não muito!

Amar um animal é fácil. Difícil é só ouvir das pessoas que esse sentimento é um desperdício, que é ‘só um bicho’. Pura tolice de quem fala. Com certeza, essa pessoa não possui um cachorro, nunca viveu um momento de companheirismo. Sempre pude contar com Negrita. Em todos os meus chororôs, ela estava lá. Do jeito dela, mas entendia que eu não estava bem e se abria para eu alisá-la. Nós que pensamos que ela queria o carinho. Não! Eu queria o carinho e sentia no gesto toda a sua lealdade.

Quando falo a idade dela, o espanto é geral. Pessoas que a conheceram novinha ficam pasmas. Para outros, eu deveria sacrificá-la, parar de torturá-la ou de ter trabalho. Mais uma vez, tolice. Ninguém mata uma avó porque está idosa. Para nós, optar pelo sacrifício será uma árdua decisão, mas será pensada quando os veterinários conversarem e aconselharem para que ela não sinta dor. Enquanto eles continuarem espantados com a saúde dela, continuaremos desfrutando de sua presença em nossa vida. É fácil? Perdi as contas, mas NÃO mais uma vez. Temos que dar calmantes quando soltam fogos de artifício (ela começou a ter medo depois que jogaram perto dela uma bombinha. Ela, cega, se assustou). Temos que continuar optando por casas quando vamos procurar outro imóvel. Temos também que dormir em casa ou se revezar para que ela não fique muito tempo sozinha. Temos que variar a ração para ela não enjoar. Temos que fazer muito. Mas esse muito parece – e é – insignificante diante de tantos anos do amor mais puro e sincero que conhecemos. Não minimizo aqui os demais tipos e intensidades de afeto. Mas eis aqui uma pessoa apaixonada por cães. E enquanto eles continuarem justificando esse meu amor, vou seguir defendendo-os.
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