14 de dezembro de 2018

A você, Seu Marcos


O que pode acontecer em 32 horas? O que você já viveu nesse tempo? Imagino que um monte de coisa, sendo a maioria atividade rotineira. Trivialidades que nem chegam a ficar em nossa memória. Encerro esse ciclo de pouco mais de um dia neste momento. Ontem, às 6h, te ganhei. Hoje, às 14h, escrevo para lidar com sua ida para Deus. Foi o meu bom dia saber que você havia sido pego por cachorros. Combinei com Deus que iria te resgatar, mas que Ele ficasse à vontade se já fosse a hora de levar. Não era. Passei e te encontrei embaixo de um pneu. Com a respiração difícil, você resistiu. Me mostrou os dentes, mas te respeitei e acho que você confiou em mim. Logo, estava aninhado em meu colo.

Não sei de onde você veio. Mas, se estava na rua de madrugada e exposto a qualquer coisa, faltou lar. Acomodado no lençol enquanto esperávamos o uber, ouviu perguntas de gente que voltava da atividade física ou ia para o trabalho. Nenhum oferecimento de ajuda. Apenas a vontade de saciar a curiosidade e/ou, ao me ver ali, aliviar o peso na consciência (de quem tem). Isso doeu em mim. Àquela altura, não sei se doía em você. Foi tantas vezes ignorado que pode ter ficado anestesiado, assim como milhares ao nosso redor.


Tentei te mostrar que ainda há amor nessa vida, oras. Que vale a pena lutar!



O motorista, um senhor simpático que ouvia chorinho, trouxe de alguma forma paz e esperança para a gente. Chegamos à clínica e fomos direto para a sala de emergência. Vou pular a parte do diagnóstico, não tem importância agora. Fiquei lá, não te larguei um segundo. Talvez alguns. Segurei o oxigênio, suas patas e tentei te distrair para não sentir a agulha tentando achar sua veia. Você mantinha os olhos fechados e pouco chorava. Fingi que não estava vendo a preocupação da equipe médica. Falhei ao transparecer preocupação com o custo daquilo tudo e com tanto mediquês. Você começou a medicação, fomos para as salas de exames e fui chamada à recepção para fazer o cadastro.


- Nome?, perguntou a atendente.
- Er...Seu Marcos, respondi, lembrando que foi o porteiro que me falou de você.


Voltei para você e percebi minha completa falta de habilidade para acariciar um gato. Com cachorro sempre foi mais fácil. As minhas são grandes, sei onde pegar e quais os pontos mais sensíveis.. Eu não sabia suas preferências. Nada. Mas pera. Carinho é sempre bem-vindo. Então, eu estava lá te catando, apertando sua almofadinha e pegando em sua orelha. “Eita, vai ficar tão lindo quando terminar essa fase”, pensei. Era um misto de afeto, medo do que viria, julgamento da sociedade. Sabia que, neste mundo de adultos, parece um crime olhar para um animal de rua e cuidar dele? Pois é. As pessoas estão ocupadas demais com suas vidas. E sabe de outra coisa? Não tem um mês que um cachorro aqui morreu a pauladas e esse foi um dos assuntos mais comentados. Foi de uma sensibilização linda. Pena que há um buraco enorme entre as redes sociais e a realidade.

Você ficou internado. Seu corpo seria aquecido e o remédio faria efeito. Eu voltei de noite para te visitar. Quarenta minutos de espera e fomos ao internamento. Meu Deus, você estava mais esperto. Se mexeu, abriu os olhos e me mostrou uma cor linda. Elogiei. Te dividi um pouco e grudei de novo. Você se aninhou, fechou o olho e curtiu meu carinho até termos que ir embora. Tinha reagido, embora ainda fosse ficar internado. O dia, que tinha sido mega puxado, já tinha compensado. Bota no chão os questionamentos das pessoas, o espanto, as críticas. Nada disso tem importância mais.

Hoje procurei saber de você e a notícia foi desanimadora. Piorou. Corremos para ouvir mais opinião, liberei a realização de outro exame, negociei horário para te visitar. Antecipei meu almoço, mas não consegui chegar ao fim. A ligação veio antes para me falar que você não tinha resistido. Não me contive. Não é bem um dor de consciência. Pode ser o sentimento de impotência, talvez, e a tristeza por não saber que era uma despedida. Tínhamos combinado que você sairia dessa, rapaz! Não sabia ainda qual seria seu destino, que jamais seria a rua novamente. 


Peguei a bicicleta e fui o mais rápido que pude. Após outra espera, te vi. Seu corpinho já frio esperava a remoção. Foi respeitado por todos, até pelo cachorro que parou de latir. A médica explicou tudo enquanto eu apertava de novo sua almofadinha. Olhei mais uma vez cada parte sua, levantei e fechei as patas, toquei na costela, na orelha. Fui invasiva, visse? Desculpa!


Entendi ali que não é o tempo que define a intensidade da dor. Senti como se tivesse revivendo as outras despedidas que tive. É o envolvimento. Guardei uma frase de João Gilberto que li em exposição há mais de um ano e acho que chegou a merecida hora de usar: "Aquilo que é bom não morre nunca. Pode desaparecer por um momento. Mas só. Somente a qualidade decide sobre a perenidade”. 

Como não era o tempo que ia  determinar minha dor e amor, cheirei sua orelha – um hábito que tenho com minhas meninas. Você foi meu menino e merecia esse amor por mais tempo. Merecia que ele fosse preventivo e chegasse a tempo de você ainda acreditar na humanidade. Por favor, chega aí e encontra os meus. Diz que estou com saudade e que sigo tentando não decepcionar. 

Você foi lindo aqui. Você é livre aí.




13 de agosto de 2018

Música e memória




Meu primeiro cd pirata foi o de Terrasamba. Era uma febre porque a gente-podia-ter-nosso-artista-em-casa-por-uma-pechincha!!!!! E assim vieram mais. Nem lembro quais foram.

Fato é que estava na Noite das Meninas, famoso evento aqui em casa, e colocamos na tv algum show de Roupa Nova e, em seguida, tocou Fábio Jr. Aquela bad, né? Lembrei de uma época (rara, bem rara rsss) de aperto de vida que passamos.

Já deve ter em algum post aqui, mas a casa era sofrida e nós também éramos, embora também houvesse muita alegria. Eu colocava esse bendito dvd - e também um de Isabela Taviani - para tocar na apertada e aquecida tv da sala. Isso era um estímulo para fazermos uma renda extra lá em casa. A gente, que nem computador tinha, digitava formulário de carteira de estudante. Não tinha fim. Os papéis brotavam e, graças a Deus, nossos braços continuaram inteiros. 

Não lembro ao certo, mas parece que cada formulário valia uns R$00,20. Isso mesmo, população. Uns vinte centavos. Foi trabalho, viu? Até vovó, quando ia para lá, digitava. Cada um colaborava um pouco e ajudou a custear alguma coisa - mainha lembrou agora que a grana cobriu três meses da faculdade dela.

Deu um saudosismo agora. E olhe que nem era um tempo de ápice de alegria. Se bem que ninguém vive uma eterna felicidade, assim como a tristeza. Nesa época, cada centavo era uma comemoração. Não tínhamos internet, tv fechada, balcão inteiro na cozinha, porta no banheiro. Ah, não tinha banheiro. O cadeado das portas principais podiam ser abertos com um espirro.

E nada de mau nos aconteceu. Passamos por essa fase, por outras e estamos em mais tantas. Mas algo me prende a cada fase. É algum tipo de saudade. Uma soma de dor com vontade de voltar e ficar um tempinho lá nos vendo viver. Do jeitinho que era.

5 de fevereiro de 2018

A memória de locadora



Ficamos uns dias sem a tv por assinatura em casa. Aliado a outros fatores, foi entediante depender apenas da Netflix. Mas fui salva por uma memória de uns dez anos atrás, pelo menos. Já era o fim das locadoras, mas ainda havia uma em Água Fria, que funcionava em uma casa velha e com cheiro de madeira.

Na infância, eu vivia na locadora nos finais de semana. Era uma tarefa quase programada. Sabia que voltaria com três filmes – para assistir em videocassete - e que aproveitaria a promoção. Geralmente você locava um lançamento e ganhava catálogo. Ou algo assim. Mas o ruim de levar lançamento era que a gente tinha que devolver em 24h. Lembro que eu andava um tempão pelos corredores (não muitos, afinal, era Rio Doce) e olhava exatamente as mesmas capas da semana anterior. Você escolhia colorido e vinha numa caixa preta e branca. Havia as divisões por gênero e a famosa-parte-proibida-para-menores. E aquilo sempre deixava curiosidade. Mas não me atrevia.

Quando muito estruturada, ali mesmo eu já comprava salgadinho, confeitos e afins para minhas sessões. Geralmente, vinha “Nove Meses”. Eu não sei o que tinha nesse filme para me atrair tanto, mas o fato é que, por semanas, eu só voltava com ele e assistia mesmo. Ninguém lá em casa me acompanhava mais na sessão.

Eu gostava tanto de locadora que essa era uma das brincadeiras. Separava e catalogava as fitas do videogame, empinava o colchão, montava a TV (ligada no canal 3) e abria minha locadora. Eu só não tinha a inteligência de perceber que eu passava o dia vendo meu primo jogar, já que ele locava, e eu ficava ali só esperando o outro cliente entrar – o que nunca ia acontecer, não é?


Em menos de 20 anos, tudo mudou. Passamos a locar dvd, o que evitava o trabalho de rebobinar a fita e a pena de multa se não levássemos assim. Mas ali já era uma decadência desses espaços mesmo. Perdemos e ganhamos para a internet. Tudo está nas plataformas e me sinto velha falando isso. Foi muito rápido. Mas se tem uma coisa que não mudou foi o tempo que circulo nas categorias para escolher os filmes que vão para a infinita “minha lista” e os que pretendo assistir na hora. O prazer é o mesmo, mas ainda falta o cheiro da locadora que não volta mais, mesmo eu indo pelo Google Maps para reacender essa memória.
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