Morando a uns tantos quilômetros do trabalho agora, nem
sempre tenho carona para os trajetos. E ontem foi assim. Voltei de ônibus e,
diante do horário de pico, ele estava cheio e optei por ficar antes da catraca.
Coloquei minha mochila no chão e me acomodei, dentro do que é possível em um
sistema de transporte deficiente como o nosso. Não sei em que momento isso
aconteceu, mas olhei para a porta dianteira e vi que tinha acontecido algum mal
entendido entre o motorista e um rapaz. Coisa simples e sem exaltações.
A partir desse momento, passei a observar mais os dois. Pouco
tempo depois, presenciei o seguinte diálogo:
Cobrador: ei, vai passar ou já desse a real para o motorista
e dissesse que tás de carona?
O rapaz, meio emputecido, disse: falei
Motorista: falasse o que pra mim? falasse não
Rapaz: deixa, abre que eu vou descer
Eu estava na mesma situação que o rapaz: não tínhamos pago a
passagem e estávamos dentro do ônibus. Confiaram que eu pagaria e duvidaram
dele. Qual a diferença? A aparência. Tal qual o vídeo que circulou nas redes registrando
alguém que teve o celular furtado no ônibus. A vítima acusou uma mulher negra de
ter cometido o ato. Imediatamente, ela é revistada pela polícia e exposta para
todos os passageiros. Chamou minha atenção o quanto ela parecia estar habituada a esse
tipo de situação, de humilhação. Era um conformismo sofrido, mas insonoro. O
vídeo é um pouco longo e o melhor está no final: quem havia furtado o item foi
outra mulher. Branca, loira e de ~~boa aparência~~.
O rapaz de ontem é negro e estava despenteado. Usava roupas roupas simples
e gastas, um chinelo e estava agarrando uma mochila. A diferença entre nós era
a cor - acho que sou parda-, e eu estava com roupas mais conservadas, embora
velhas.
Isso foi o que nos diferenciou, na visão do cobrador e motorista (dois profissionais
tão sacrificados no mercado e mal pagos). A imagem determinou a conduta deles e
norteou o tom da intolerância. O preconceito deu a eles o álibi para agirem
dessa forma. Claro que o rapaz estava puto. E acredito mesmo que ele estava
pegando carona e não tinha condições de pagar, mas eles não sabiam se eu tinha dinheiro.
Eu também não havia dito que ia esperar esvaziar, que ia pegar carona..nada.
Nós dois apenas subimos e nos acomodamos.
Intervi e entrei na conversa para avisar ao rapaz que pagaria a passagem
dele. E a minha. Ele passou e ganhou o direito ao respeito, tão comum a quem
tem condições de bancar qualquer coisa neste pais. O que não passou foi a minha
indignação. O que não deve ter passado também foi a dor dele.